segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Varizes

Serra a grama,
Mama o seio
Declama no mar de centeio
Que ama                     
Que ama

E pede ao sol de janeiro
Que o encha de luz o ano inteiro!
Em chama
Derrama.

Quiçá verá lua cheia
Se o céu explodir, incendeia.
Se meia,
Tão feia.

Jaz nesse canto, entretanto
O timbre d'um homem cigano
Um ano
Profano.

Mataram seu sol veraneio
Cessaram, outrora belo, devaneio
E ainda assim exclama;
Que ama
Que ama.





No metrô

Ei, menino de corpo curvado,
Você aí, com casaco engomado,
Que com as mãos um olhar despreza,
Que tira a beata da reza

Você que foi feito do olhar da Medusa
Que convence a mocinha a tirar a blusa
Que com tanta arrogância despende o cigarro
Que atrai do menino o olhar no carro

Você com sorriso de Monalisa
Que com teu faro confunde a brisa
Que já não se altera ao que está por vir
Cujo semblante se faz sentir

Que desvenda o que a mente atinge
Que derruba do pedestal a Esfinge
Você, garoto, de entranhas ferinas
Que dispersa fumaça naquelas esquinas

Você que possui nos cachos o Sol
Que traz na língua um pequeno anzol
Que carrega nos ombros um peso qualquer
Que conhece de cor perfumes de mulher

Poderia, -perdoe-me por tamanha indiscrição-
Tirar os olhos de minhas pernas e me dizer que horas são?

O segredo das estrelas

A noite vinha depressa, forçando o Sol a se esconder. Era ele um grande covarde, era o que pensava. Lembrava-se de que, quando menina, sempre dizia ao Sol, logo antes desse ir-se:
- Não vá, tolinho, não precisa ir. Não tenha medo do escuro, pois ele não pode fazer-lhe mal algum! Não confias em mim, Solzinho?
Mas ele sempre ia embora. E ela ficava sozinha, e com raiva e medo misturados no confuso coração.
Hoje, nesse fim de tarde gélido, ela via o Sol fugir mais uma vez. E mais uma vez ele a desapontava. Ela bufou, e virou levemente o rosto, como quem diz:
‘- Eu não acredito que confiei em você. Você, mais uma vez, me decepcionou. ’, assim como fazia toda tarde.
Mas aí, como em toda tarde, acontecia uma mágica. Quando o Sol já tocava a linha do horizonte, já louco para ir embora, parava de repente. Era como se, ao ver o que fazia com a menina, se sentisse muito culpado.
E, nessa hora, a menina quase flutuava de alegria. Porque era nessa hora que o Sol vencia um pouquinho a pressa e ficava um pouco mais. E, vendo como ela tremelicava, frágil, embalava-a com um espetáculo de cores que pintava metade do mundo. Cobria seus braços arrepiados com seus raios mais ternos, e abraçava-a com força até que ela soltasse um pequeno sorriso.
E ele sabia que ela o havia perdoado.
Daí, ele ficava tão feliz que brilhava mais, mais do que durante todo o dia e por um segundo a felicidade do Sol resplandecia em cada beijo, em cada passo, em cada lágrima que caía até onde ele alcançava. E o mundo sorria com ele.
E como ela ficava feliz! Ah, mas ela tinha também muita raiva. Porque seria tudo muito, muito mais fácil se ele não se despedisse assim. Ela iria simplesmente odiá-lo para sempre, e pronto.
Mas o Sol nunca ia embora sem se despedir, sem pedir perdão.
E, por mais que ela relutasse, que soubesse que seria assim de novo na tarde seguinte, bastava ele pintar o céu de todas as cores do mundo misturadas, irradiando-as em seus raios para cada cantinho que queria alcançar, e ela estava de novo apaixonada.
Aí, ele ia embora. E ela continuava ali, em seu banco de praça, sentada de olhos fechados, aspirando o restinho do calor de seu maior amante. E esperava a noite bem quietinha. Não importava se estava com frio, ou com medo. Porque pelo Sol, ela vencia o medo.
Mas também porque a despedida do Sol ficava ainda mais bonita seguida da noite. Porque a felicidade dele se espalhava e respingava no céu, e fazia as estrelas. E a menina ria, ria da inveja da lua e do amor do Sol.
E a menina entendia que o Sol também precisava dar luz às outras pessoas. Dar um pouquinho do seu calor a elas. Ele não ia embora de propósito, para magoá-la.
Mas ele sempre deixava um pouquinho dele com ela, para ela cuidar. E ela soube que ele a amava, e confiava nela, e queria que o mundo todo visse isso.
Nessa noite, ela olhou pro céu com força, tentando capturar com um só olhar todos os pedacinhos que o Sol deixou pra ela. Ficou assim por muito, muito tempo, apreciando a declaração secreta que ele a fizera.
E, em meio àquela noite sem nuvens, ela guardou mais uma vez aquele segredo. O segredo que o Sol só confiava a ela. O segredo das estrelas.

Acho que nado contra a corrente

Porque lutas contra o amor
Quando este se faz presente?
Por que, Meu Deus, por quê?
Acho que nado contra a corrente.

Que estupidez também a deles!
Tão difícil está achar,
Num mundo de corações gelados
Alguém pra se compartilhar.

Mas veja bem que sorte a minha
Logo eu, tão ameno!
Achei alguém que vale a pena
Nesse mundo nem tão pequeno.

Se a visse hoje agora,
Não entenderia do que falo.
Não é daquelas que vem embrulhada:
Veio montada em seu próprio cavalo.

Não carrega o próprio sol
Nem cria órbitas, ou o que seja.
Atrai pra si as pequenas luzes
Mesmo as de pouca beleza.

Não tem nome de amada
Não soa bem com rima alguma
Mas seu nome se encaixa no meu
Como só o dela e de mais nenhuma.

Não finge achar graça
De nenhuma de minhas piadas
Mas ri como só ela
De todas as minhas cantadas.

Quando gira os olhos,
Penetra-me bem fundo
E quando sorri de lado
Ensina-me sobre o mundo

Já não me visita faz tempo,
Mas não me venha com conclusões!
Nem tudo é como nas histórias
E se finda em desilusões.

Não está morta nem ferida, nem deixou de me amar
Tampouco virou poeta,
Foi pra guerra ou ficou má.
Apenas tirou umas férias, foi conhecer o mar.

Acho que nado contra a corrente.

O bom escritor


O bom escritor sente. Sente até demais, às vezes. Sabe quando cantar as palavras, sabe quando tocá-las. Sabe pô-las na boca dos outros e sabe escolher seu sabor. Sabe transformá-las em filmes, sabe quando por cores ou deixá-las em preto e branco.
Sabe deixar as palavras mudas, surdas, cegas. Sabe amá-las, sabe ninar cada uma delas e dar nome. Dar nome às palavras? Sim. Mas não pense que o bom escritor é sempre gentil. Ele também sabe ser cruel. Sabe contorcer as palavras e te deixar sem dormir à noite. Sabe juntá-las e separá-las de forma que vão lhe fazer chorar. Sabe retorcê-las em formas que as deixarão tão horripilantes que não poderá olhá-las.
Ah, não pense que ele gosta disso. O bom escritor sofre também com seu fardo, sua quase síndrome de transcrever a própria mente. Mas ele o faz. Será o bom escritor masoquista? Ora, há males que vem para bem. O bom escritor sabe disso. Ele sonha, e seus sonhos são tão consistentes que ele pode moldá-los. Ele brinca com tudo e todos, ele existe e faz existir. Como se sente o bom escritor, tão sensível, tão palpável, quando faz sorrir? O bom escritor não é egoísta. Escreve para si e para quem mais quiser.
Ah, e quando o bom escritor pega no lápis! Aí tudo vale a pena. Ele segura todos os seus tormentos, preenche todos os seus espaços. Ele fica besta e fica esperto. Nem pisca, tentando por em ordem tudo que conhece, tentando filtrar a vida num papel A4. O bom escritor sabe dizer nada e dizer tudo, sabe falar manso, sabe dançar parado. Sabe fazer sentir o que está sentindo. Sabe controlar o tempo. O bom escritor é um mentiroso, ou para ser gentil, um ilusionista. É o inventor de cada passo, que ele anda enquanto escreve.
Mas o bom escritor, acima de tudo, sabe quando não falar nada. Sabe exatamente quando algo é tão bonito, tão bruto, tão impossivelmente chocante e secreto que é melhor não dizê-lo. Por que ele sabe que a palavra escreve muito mais do que os olhos vêem. Mas que existe o indescritível; e ele tem seu valor. O bom escritor silencia, o que os outros não sabem fazer.

Testamento

A aqueles que me amaram,
Deixo o orvalho no verão
A aqueles que por mim choraram,
As cartas no alçapão
Aos poucos que acreditaram
Naquilo que queriam ver
Deixo as utopias guardadas
E o sol do entardecer
Aos beberrões e aos sãos,
E aos desacreditados na vida
Deixo todas as memórias
E as canções de pianista
A aqueles que não me viram
Ou jamais virão a ver
Deixo-lhes os meus sorrisos
E o meu ‘muito prazer’
Aos velhinhos de todo o mundo,
Deixo as cores e a insensatez
E todos os meus antigos
Parceiros de xadrez
A aqueles que amei em silêncio
Que fiquem com a irritação
De procurar no escuro
O caminho para um coração
Aos jovens e derivados
Deixo a eles o prazer,
Deixo a cartela de cigarros
E os pecados que quis cometer
Aos que tem um ao outro
Dou apenas a solidão
Dentre todas as almas grudadas
Há de haver um espaço vão
Aos eternos coadjuvantes
Dou as palmas finais
Atuar em invisível
É o mais triste dos rituais
Aos que tiveram quase tudo
Dou-lhes ainda mais,
Viver pela metade
É morrer sem viver jamais
Aos que nunca existiram
Dou as lágrimas que não chorei
E aos que morrerão comigo
O pouco que ainda sei
E a ti, que tanto amei,
E que tanto me foi querido
Deixo apenas os tormentos
De mais um coração ferido.

Ah, coração

[Antiquíssimo].

Ah, coração pobre, coração mudo.
Fez-me abrir mão de quase tudo.
Deixou-me entre a culpa e culpar os mais fracos.
- Tirou-me de mim arrancando nacos. -

Ah, coração cruel.
Transfigurou-me na mais venenosa cascavel.
Vendou-me a alma e amarrou-me aos acasos.
- Construiu pontes e destruiu barcos. -

Ah, coração mundano.
Prendeu-me em todos os meus enganos.
Embaralhou as certezas e espalhou boatos
- Iludiu-me com todos os falsos fatos. -

Mas, ah, coração pequeno,
Só eu sei como está sofrendo.
Sair da bolha e cair no chão:
- Amargo é o gosto da solidão. –

Parte de projetos antigos

[...] -Morreu? Morreu como?
- Morrendo, oras. Uma hora estava lá e na outra, plim, não estava mais.
- Mas e aí, o que mais?
Olhou-a como se fosse uma completa mula.
- O que mais o que? Morreu. Acabou. Fim da história. Sem coros, sem velas, sem discurso. Só... Morreu.
- Mas você a amava!
- Sim, verdade. E...?
- Como pode tratar a morte de alguém que amou com tamanha indiferença?! Como? Onde estarão teus sentimentos, Jack?
Agora sim ele arregalou os olhos. Não esperava aquela explosão de indignação.
- Acalme-se. Claro que fiquei triste, mas não podia fazer nada. Ela morreu, ora bolas.
- Mas... Mas você nem chorou?
Dessa vez ele riu.
- Querida, eu nunca chorei.
Ela parou de andar e ele se virou. Sua face estava lívida Não se podia prever até que já fosse tarde demais.
- O que quer dizer com isso, Jack?
- Nunca. Jamais achei necessário.
- Não se chora por necessidade! Jack!
- E por que se chora, então? Tudo o que faço é por necessidade. Como, bebo fumo, durmo. – Olho para você, pensou, mas calou-se. E se segurou para não se esbofetear. Pensamento estúpido.
- Jack!
Agora ela estava histérica. Jack morria de preguiça de mulheres histéricas.
- Você chora por vários motivos, ou até sem motivo... Os sentimentos se acumulam e você os joga fora! Sempre foi assim!
- Não para mim. Agora pare de drama.
- Mas, Jack...
- Ouça bem, querida. Tudo é muito mais simples do que você faz parecer: eu sou um homem. Tenho problemas. Penso um pouco e resolvo-os. Se não conseguir pensar em nada, tento qualquer coisa e seja o que Deus quiser. Sem tempo para choros. Entendeu?

Ela estava perplexa, pasmada, engasgada com suas palavras. Era uma dama, daquelas que cresceram botando enfeite em tudo o que viam. Ao ver Jack simplificando tudo, ficava meio louca. É sempre assim quando se percebe que se passou a vida inteira complicando tudo, Jack concluiu.

- Não. Você não é alguém que se compreende, Jack.
Revirou os olhos, desistindo. – e eu gosto disso.
Beijou-o.
Jack nunca tinha sido beijado na vida. Ele já beijara mais do que Casanova e Don Juan, mas nunca recebera um beijo. As garotas ficavam tontas perto dele, e se derretiam a cada toque. Mas Mary Alice não era assim. Ela, a garota mais complicada que ele já conhecera, o estava beijando.
Retribuiu com toda sua intensidade, no melhor estilo Jack.
- Sabe Jack, eu não acredito que você nunca chorou.
Ah, estava bom demais para ser real. De novo o papo de choro.
- Pois é, não.
- O que houve com Amy depois de morta?
- Joguei o corpo no mar, taquei-lhe uma garrafa de absinto e curvei-me sob a ponte.
- Jogou-a no mar?
- Sim. Veja bem, eu não teria dinheiro para enterrá-la. E como a família a deserdou quando fugiu atrás de mim, não iam financiar nada. Mas fui gentil e deixei-lhe minha bebida, para que ela se aquecesse no frio e tivesse diversão.
A garota fez menção de sorrir. Ele percebeu que foi a primeira coisa ‘apaixonada’ que dissera sobre Amy.
O oficial apareceu tão rápido que Jack ficou sem ação.
- Estou cansado de seus joguinhos, Ferraseg! – Atirou. Jack só teve tempo de pegar Mary Alice e tentar subir na proa da embarcação mais próxima, mas não foi tão rápido. Ao soltar as amarras, percebeu o sangue nas roupas. Soltou Mary Alice. E então viu.
Ele olhou no meio dos olhos da moça, olhos que outrora fizeram seu mundo tremer, e que permaneciam misteriosamente abertos, e soltou com dificuldade sua mão, que se agarrara a seu corpo. Beijou os lábios ainda quentes dela e fez menção de jogá-la ao mar. Encarou-a um segundo a mais, prensou-a contra o peito e encostou-a nas águas tortuosas. Postou a seu lado a mais preciosa garrafa de absinto e fez-lhe uma mesura que quase o derrubou. Enfiou o broche amassado no bolso do vestido antes que ela se fosse
O barco batia nas ondas devagar, e Jack já não estava sóbrio há um bom tempo. Lançou um olhar ao horizonte e viu terra seca. Provavelmente, um novo território a ser desbravado, cheio de prostitutas lindas e bebida à vontade.
Mas sem Mary Alice, pensou de má vontade.
Chegou ao novo local com toda a pompa, e foi descendo em meio à risadas. Olhava com atenção quando a sentiu. Era pequena, tímida, diferente de tudo que se referia a Jack. Mas estava lá.
Exatamente como Mary Alice estava horas atrás, pensou, a contragosto. Se pensasse nela a todo o instante, ia ficar insuportavelmente chato.
Um brotinho de água, salgada como o mar, criou-se no canto do olho esquerdo de Jack.
‘E essa agora’, pensou, enquanto apalpava o traseiro de uma linda mulher e dava outro gole em sua garrafa restante.

A cor da estrela

Aquilo era algo que qualquer um podia ver, mas para o homem que se postava ali era algo a mais. Era um sinal.

Se não tivesse lhe prometido que deixaria o vício, já teria fumado trinta cigarros, cada qual tragado tão lentamente como faria o mar, hoje, tão cinza.

Cinza como seus cabelos.

Há algum tempo atrás não estaria ali em um dia como aquele. Por mais frio e chuvoso que estivesse, daria um jeito de descobrir suas rotas, para fingir encontrá-la por acaso. Ela riria de tamanha tolice, riria como se ninguém a estivesse olhando. Riria daquele jeito que fazia os olhos sumirem em sua pele bege-claro.
Mas não eram nesses dias que ele pensava.
Pensava nos dias claros, em que o mundo se coloria só pra deixar aqueles cabelos mais foscos. Tanto que reluziam.

Ah, quanta contradição numa só garota.

Num desses dias, um de seus favoritos, a levara para o Aquário.

Lembrou-se da cara azeda que ela fizera ao chegar lá, dizendo logo que não gostava da idéia. Sempre insistira que as águas lhe eram demasiado pesadas, e assim ocorria com as criaturas de lá. Devia ter algum trauma muito forte com o mar, mas esse era só mais um de seus mistérios que ele nunca desvendou.
Ela dizia pertencer aos céus.

O homem na ponte não ousaria discutir.

Puxou-a para dentro de um lugar, o lugar onde habitava a melhor memória que se podia guardar. Sorria calado ao saber que, aquela lembrança, conseguira manter intacta.
Ao redor dela, de seus cabelos cinza foscos, o mar os assistia. As fileiras de corais alternavam-se nas cores mais vibrantes e formatos mais inusitados, prendendo a atenção de tal forma que se assustara ao descobrir uma arraia surgir do repouso na areia. Os peixes moviam-se rápido, cardumes enormes, todos parecendo lutar para vê-la melhor.

Mas ela só tinha olhos para uma coisa.
Em meio à imensidão azul, havia uma estrela. Uma estrela-do-mar, na realidade, meio fosca como seus cabelos. Os olhos castanho-escuros vibraram ao vê-la:
-Tom, veja só! O mar também tem estrelas, assim como o céu! Venha, veja como é linda!
Levou-o até lá e continuou olhando, olhando como um cãozinho de vitrine que pede para ser adotado. Seu maior sonho era tocar uma estrela.
Ele sumiu por alguns instantes, e quando voltou, viu-a desolada.
-Ah, Tom. Você não sabe. O mergulhador levou-a, levou-a de mim! – ela mordia o lábio, irritada e magoada ao mesmo tempo.

Essa era sua parte favorita, e fechou os olhos com força para ver bem.

Pediu a ela que sentasse quieta, de olhos fechados.

Bem em meio ao aquário que os circundava, sozinhos naquela ala mais vazia, ela sentou-se de uma vez, impaciente. Mas, a seus olhos, ela foi baixando devagar, os cabelos flutuando mais leves que o ar, como os de uma sereia.

Ela tinha a boca em forma de beicinho e os braços cruzados, e os olhos espremidos com uma força exagerada. Parecia uma fadinha raivosa, e ainda assim linda.
Tirou as mãos, até então escondidas atrás das costas, e postou no topo de sua cabeça a tal estrela. A que ele pedira para pegarem para ele.

A estrela de sua garota.

A cena seguinte parecia estar acontecendo em outra dimensão.
A estrela foi se adaptando, bem devagar, a ela. Baixou as pontas cuidadosamente, curiosa, delicada. Parecia ter medo de destruir a seda que combinava tão bem com ela mesma. Enquanto isso, a expressão da garota foi mudando. Descruzou os braços e o biquinho se transformou em um sorriso leve, que dava a impressão de que ela flutuava. Respirava fundo, como alguém que medita, e de vez em quando sentia cócegas e soltava uma risadinha incontida. Não ousava se mexer. Ficaram assim um bom tempo, o homem admirando-as fundirem uma na outra, a estrela e a garota.

Ao fim, as duas pareciam voar.

Mais tarde naquele mesmo dia, a garota diria a ele que quando a tocava, era como aquela estrela. Como se ousasse perder qualquer parte, qualquer chance de tê-la com ele.

E o homem da ponte sorriu. Na ponte e nas memórias.

O mar estava agitado.

Aquilo era algo que qualquer um podia ver, mas para o homem que se postava ali era algo a mais. Era um sinal.

As águas cinzentas lembravam-no de algo que o fazia bem. Deixou o vento bater-lhe o rosto, e sentiu-o moldar-se na mesma expressão que ela fizera.

A de ser tocado por uma estrela.

Uma que, infelizmente, não pertencia mais a ele.

Singela e magnânima

[O meu primeiro poema de todos].

 Singela e magnânima,
Punha-se a cantar
Para ver se conseguia
As pedrinhas agradar.

As pedrinhas, no entanto
Consideraram-na metida
Fazendo a pobre garota
Em prantos ser esquecida.

Adormeceu ali por perto,
Com as lágrimas engolidas
Deixando, vejam só!
As pedrinhas muito sentidas.

Na manhã seguinte
Logo estremeceu
A menina, ao ver
O que se sucedeu

As pedrinhas, pequeninas
Resolveram se redimir
Cantavam sua canção
Enquanto ela as via sair.

Estas, para sua surpresa,
Pulavam ilesas
De um infinito penhasco
Para se tornarem estrelas.

Descalça

Descalça.
Olhos baixos, passos leves, descalça. E com uma saia de tule murcha pelos pingos que caiam.
 Ping - Ping.
Suaves explosões, ora densas, ora cristalinas. Musicando a tarde gelada. Não os pingos, a menina. Eles a tarde, ela a melodia. Mudei meu caminho pro caminho dela; Por aquele e por todos os dias.
Seu nome já estava fadado à arte, Beethoven previu que ela viria. Elisa. A moça do segundo andar do prédio amarelo da Liberdade; entretanto, de cabelos turvos. De madrugada, aspirante à boemia. De dia estudante de cinema. À tardezinha, concertista de violoncelo. E àquela hora, aquela que eu sei que você conhece, mas que não tem nome, exatamente depois do Sol, mas antes de escurecer, subia na ponta e pronto – nem eu mais sabia.
De começo, devagarinho, sorrateiro. Via de longe. Sentia dentro. Uma menina em um milhão. O zelador tornou-se ouvinte, quando eu contava das almas que ela me lembrava. E por fim, falei com ela. Mordiscava os lábios – Deus, eu não posso com tanto. Pintávamos faixas pra revolução. Ela dizia sobre arte e até os planetas se alinhavam pra ouvir. Tornei-me dela.
E me mantinha acordado se eu não pudesse dormir; como quem ousa pela primeira vez por no céu um passarinho. Detestava meus autores. Desrespeitava meus programas. Desregulava meu relógio. De dia em dia, se sentava ao meu piano. E as notas dançavam, somente ao toque dela. Cantava sem nem saber. Quando chovia, nos escondia no armário da cozinha. Fazia sombras, mal sabendo ser a luz. Tornou-me seu.
Mas como se sabe, belas moças não nos cabem. Acordei sem querer e dormi como quem quis. Não houve malas nem muletas pros nossos fins. E não choveu, como faria Deus se me gostasse. Os pingos escorridos foram meus.
E descalça.
Olhos certos, passos leves, descalça. De sapatilhas frouxas pelos pés que lhe serviam.
Ping- Ping.
Suaves explosões, ora densas, ora cristalinas. Musicando o peito gelado. Não os pingos, a menina. Eles a tarde, ela a melodia. Mudou seu caminho pra um caminho só seu. Por aquele e por todos os dias.

Ao Sol do Mediterrâneo

Levantar ao Sol do mediterrâneo, contrariando a vulgaridade ultrajante dos outros sóis, coincide com o acordar. Aqui, as cortinas de xale bege lentamente abrem espaço em sua janela, e agora olho pro mundo sem fazer questão de vê-lo. Mulheres de pele acaju se rendem muito cedo às tarefas do dia-a-dia, e mesmo assim constituem minha primeira visão de domingo. Tantos homens se levantam, como ouço nas histórias, e continuam a dormir, trocando flatulências soníferas até voltarem ao travesseiro... Pois aqui pássaro nenhum ousa por canto no silêncio da fotografia que são nossas janelas. Os barcos atracam, e levam embora poetas saídos do mar. E o mar? O mar é mesmo o caos. O que há de claustrofóbico, além das constipações humanas e sua desonestidade. Somente o mar, nada que vá e não contenha suas ondas, carregado das correntes ressonantes. Que resta a nós se não o contemplar, fazer música e esperar que ele a toque. Mar é maior que o instigante ou prazeroso. Essas almas que se ajuntam confraternizam o melhor que se há de ter, mas bem sabendo que nossa terra, não nos possui. Homens de bem, desgarrados pelo mundo, porque ilha como essa nem Crusoé conheceu, apesar dos filhos dos indígenas miscigenarem nossa raiz. Temos fome de colheita, de arvoredos, e nossas árvores brotam de espelhos d'água. Ah, os ignóbeis que jamais tornaram a vir, porque assistir-nos não os torna pertencentes. Acordei, estou de pé, os pescadores tecem redes com os dentes, tenho calos nas mãos e queimaduras tatuadas, é quase hora de descer à praia. Que é a praia, perguntaria algum peixe de outra lua, esta recoberta pelas zonas abissais. É onde acaba o mar, responderia o almirante calejado. Mas a que mais me cabe em questão de conhecê-la, é a dos piratas. "Porque a praia é meu cochilo inerte, carregado de sonhos e tesouros viscosos". E o que ser senão isso? A praia guarda minhas conchas e os corpos dos antigos que caíram ao curvarem-se. Acordei ao levantar. As lavadeiras tem o sal a seu favor. Vejo gaivotas guardando pelos maridos das amarras. Que hei de dizer? O mundo é pouco ao se dizer bonito. Sobrou aos homens fazê-lo. Aqui, onde as janelas são fotografias.

Coralina cessou; 10.2010

Coralina cessou
Cessou a despensa e a tendência
Tendência a artista
A falange e as amídalas
Cessou os quadros falidos
Cessou as revistas
Cessou a dependência,
De clero à polícia
Coralina cessou
Os fatos duvidosos
Cessou os sofistas
E os curiosos
Cessou as viagens
Os amores em Pisa
Pisou nos detalhes
Moralizou os cronistas
Coralina cessou
Cessou o cinema
Em nome da cinética
E da inércia.
Cessou beijos em plenos lábios
Cessou anarquistas e seus palácios
Cessou conquistas
E partidários.
Coralina cessou
Censurou o cessar
Aderiu ao corar
E cessou cada cor
Coralina cessou
Molestou o calor
Coralina prostrou
E cessou o sentir
Por tudo saber
Nada novo por vir
Nem o povo a intervir.
No fim nem se viu
Ou ouviu mais falar
Não houve o que cessar
Coralina cessou
Coralina.

Autorretrato; 07.01.11

Menina ávida e geniosa demais para ser bonita. Desde pequena entre trancos e barrancos com suas conjecturas, criando caso com professores de filosofia. É que Sartre era bom demais para ser esquerdista, aparentemente. Falava-se muito sobre seu silêncio, e para ela isso era só outro jeito de o mundo ser paradoxal. Aquietava-se, porque no exato momento em que proferisse qualquer coisa, deixaria de estar pensando. E pensar era sôfrego, era redundância - mas nada além do melhor do mundo. Entretanto a fala fazia jus à fama de desbocada. Arrogante? Talvez seu maior pecado fosse crer que alguém teria ouvidos como os dela, contidos; mas de cabeça aberta. O mundo desembestava a correr e só ouvia uns fiapos de suas teorias. Era Platão sem o mundo das ideias, um Newton que ao invés de maçã, recebeu uma jaca na cabeça e perdeu os eixos. Tinha a doçura do incabível, a concisão do inabalável e o porte de quem viveu mais do que gostaria. Era a bagunça mais sentida, e seu corpo era revolução. Tinha sede de justiça e divertia-se à custa de longas discussões bem argumentadas. Gostava terrivelmente de brincar com o inconsciente enquanto permanecia não na Lua, mas numa Terra mais gentil. Não vivia um dia se nada o fosse acrescentado, mas na verdade nascia a cada Sol, porque morria a cada noite. Pensava alto em suas folhas rotas, enquanto mantinha desprezo por diários.
Um belo dia de calar tornou-se muda, mas não alheia. O caber em si mesma prejudicou-se. Não sabia admirar quem gritava o que conhecia e não praticava as próprias crenças. Era ateia, vegetariana frustrada e ex-feliz. Gostava de escrever cartas de suicídio e de coleções e seus pormenores.
 Não tinha amigos porque o mundo também não os tinha, e ela gostava da acidez de estar a par: tinha vergonha do que o faziam. Falava coisas em que não acreditava, porque que espécie de criatura merecia ouvir sua inércia? Queria afogar-se na ingenuidade das almas boas que ninguém quebrou. Queria não rir o riso amargo de um livro não lido. Queria fazer da vida o seu oposto, e fazer de si uma sepultura. Diziam que comia livros, mas era mentira; eles é que a devoravam de dentro para fora, faziam ninho em suas raízes e cresciam até voar. Sabia prever cada passo de cada vida, e mesmo assim amava todas as almas vivas e mortas. Tanto amor vinha de não sei onde, e ia rumo a não sei o que.
 Para estranhos, era esquisita (em sua cabeça, a mais certa definição); para conhecidos, uma mulher louca. Mas para íntimos, ela era nada além de uma coitada que sucumbiu (não sabiam que ela estava para a pena como o Hitler para os judeus). Fazia questão de olhar nos olhos dos outros e mostrar-lhes a face rasgada sem ter vergonha. Avisava-os do ápice de sanidade que alcançava alguém antes de deixar de ser humano. Detestava que concordassem com ela, detestava que discordassem. Todos para ela eram protótipos de criaturas que jamais fariam ideia de sua sorte, de problemas proporcionalmente intensos e mesmo assim tão ínfimos. Lia Kafka em busca de auto compreensão, por pura insegurança do signo. Ultimamente, vinha tendo dessas de acreditar em astrologia. Mas ela se conhecia como jamais ninguém faria, e falava de si com uma facilidade assustadora. Doía nos outros quase sem querer, e fazia-os sorrir mais sem querer ainda. É de raciocínio comum rir do trágico, do exterior. Escrevia na esperança de largar-se e falava na esperança de espantá-los.
Tinha essa mania estúpida de escrever na terceira pessoa, como quem subestima qualquer ser desatento e ingênuo. Mas o faz na consciência de que qualquer razoável ser a veria impressa em tinta – admitir-lhe cabe não a mim.
Só espero que não se importe.

De planetas e gravidade; 06.2010

Eu rotaciono meio às avessas, que senão fico tonta, e translaciono em torno até de estrela morta, contanto que me esquente. Mas por mais brilhante que eu lhe pareça eu não ilumino por mim, sou planeta. Sou meio assim como Plutão, menorzinha, meio duvidosa. Não tente me habitar, que eu já sou preenchida pelos vácuos e meteoros desse universo. Minha massa é pequena demais pra atrair qualquer coisa, a gravidade só me arrasta pra de um lado pro outro, nas galáxias por aí. Eu mal mantenho a mim em temperatura ambiente, vê se conseguiria lhe esquentar. Tenho órbitas que se embaraçam, e que não se findam, mas não estou perdida. Não gosto de estrelas cadente, mas tenho fascínio por nebulosas. Não tenho satélites, mas já houve de me apaixonar por uma das luas de saturno. Gosto do silêncio que me rodeia. Gosto mais ainda de não ter nome, de permaneçer alheia a qualquer descoberta, de não estar dentro de qualquer conhecimento. Gostaria de ver por aí um outro corpo astral que se juntasse a mim sem que a gravidade agisse sobre nós; ficasse por ficar.

E antes que eu esqueça há sim, em mim, vida.

A janela e sua senhorinha; 12.12.10

A janela e sua
Senhorinha
Sem hora pra nada
Tão sempre sozinha
Mal ela sabia
Que enquanto sua vista
À rua assistia
Morna e estreita
Em pouco desfeita
A mesma a via;

Despia suas casas
Sorvia as lágrimas
de seu dia a dia
Fazia pintura seus olhos manchados
Emoldurados em poesia.

Esclarecendo; 21.12.10

Eu nunca quis fazer ninguém chorar e até hoje escuto que isso foi meu mal. Acordo, ouço da Ofélia que esqueci de novo de ir ao supermercado e que sem desinfetante ela não faz serviço. O espelho, que aliás foi exigência sua, e que você largou pregado em frente à minha sala, ralha com os meus cotovelos em cima da mesa e com minha louça trincada. "Vai que quebra?", pergunta. Ah, no dia que quebrar compro outra. Aí tem o elevador que não chega nunca - me testa a paciência - e traz ainda a velha surda do outro andar, falando e falando como que ralhando com meus ouvidos. O seu Joseudo diz que tão reclamando do barulho da máquina de escrever, ah! pro inferno com esses desalmados. Ele me olha com olhos de cruzcredoavemariadeusqueproteja, que nem tua mãe fazia direitinho(vou até perguntar se ele já trabalhou por lá). Depois, algum motorista desatento me banha de água de esgoto, porque sempre chove e isso é só outro sinal de desgraça. Assim diz Hollywood no clímax das comédias românticas que você me fazia engolir. E é essa indiferença um sinal pra mim: devolve o insulto, anota a placa, denuncia. Deixo passar. O pobre há de estar cansado que nem eu mesmo.
No metrô, a luta é outra. A passagem já é um rombo no meu bolso de colunista amador, e a moça do balcão, a Carmem(tem no crachá) nunca teve olhos. Eu mesmo nunca vi. O vagão pára fora da placa, instigando meu instinto a pensar que é só porque ninguém me quer dentro, antes tivesse me jogado na frente. Cheio, lotado, e a viagem é grande. Vem o casal de pivetes se agarrar na minha fuça, quase que me enfiando no meio se não desviar a cabeça. Pra quê? Pra me lembrar que nessa época eu estava enfiado em livro estudando pra ser alguém na vida, ou pra eu ter certeza que era pra você ainda estar aqui?
O mendigo me julga, pergunta em silêncio: "Ah, mas que alinhado esse seu terno, que bonita essa pose, esses óculos, olha cá, tá com medo de mim? Ou com vergonha?" Homem abusado, jogo moeda e ele está comprado.
Caminho caminho caminho e não vejo nada, vou no automático, até algum transeunte cuspir ao meu lado, e me descer um arrepio na espinha, porque aquele escarro está cheio de vontade de me fazer chorar; ele só não sabe disso. Um passarinho bonito caga na minha cabeça. Quero cagar na dele também pra ver se é bom, mas não me fizeram pra voar.
Chegando no serviço, o Mateus me cumprimenta, aquele aceno que diz que se eu morresse ele ia no velório botar umas flores na cova. Sento na santa da cadeira e venho escrever, que é só o que me resta, e digo sempre alguma coisa pra você. Só não falo mais em você, porque senão me despedem. Eu nunca quis fazer ninguém chorar, e pensava que era pra isso que você vivia, sua missão única no mundo, do seu coração fundido das costelas. Mas é que eu, dia desses, cumprindo dessa rotina aplainada, te vi no banco do metrô. Fazendo sabe o quê? Chorando. Eu nem sabia que você era capaz de tanto; muito menos assim em público. Não parece contigo. Aí parei para pensar sobre o meu todo dia, e eu soube que você, de todas as coisas pelas quais chorei, foi a mais ínfima de todas: o pretexto. Chorei por causa da Carmem, que provavelmente queria ter fugido pra o vale do silício e não teve dinheiro. Por causa dos meus vizinhos sem poesia e do Joseudo por nem dormir ouvindo reclamação. Chorei por conta do passarinho me cagando, do mendigo me acusando, do transeunte escarrando. Chorei porque a vida é muito feia, e você disfarçava isso muito bem.
Pra terminar, porque logo dá minha hora de almoço, eu descobri que faço e fiz gente demais chorar, que nem me fazem. Com meu teque-teque na máquina, minha memória ruim pra comprar desinfetante, minha preguiça em comprar louça nova. Mas eu nunca quis que ninguém arranjasse pretexto pra chorar por causa minha, então não culpo mais ninguém. E você, se ainda compra desse jornal falido(não me despeça, seu Fernandes, e nem limpe essa parte, redação), chora o quanto quiser, quando precisar. Mesmo se não for por mim, que eu sei que não foi.
E olha, eu nunca fui tão feliz por isso.

Moça,; 27.01.11

Moça, minh'alma calou-se
Diante do mal que se ergue em azul
O mal não ser cinza, há quem negue
Mas não há olhar que carregue
Hoje o que em mim se calou.

Moça, há de ser provação?
Hão de ser as estrelas em vão?
Não mais hei de vê-las?
Hei de viver de cometas
Quando tudo em meu céu é constelação?

Moça, há explicação?
Meu corpo adentrou em fumaça!
E esse da mente disfarça
O que no coração ocorre.
- Refrato mil cores em lágrima -
Moça, será que isso passa?
Ou será que se morre?

Te digo, um mundo que cai
É um mundo que esteve em pé
Moça, se dói, bom sinal
Há um fundo no leito, e afinal
Há fundamento na fé.

Moça, meu peito sim, queima
Vi verde o pássaro e cantei à esperança
Fiz de um tropeço minha dança
E declamei em voz o que minto.

Mas o tempo há de ser o que teima
A alma, ser sempre criança
E os versos hão de fazer lembrança
A dor que deveras sinto.

Carta do até breve; 20.12.10

Beatriz!
Como estás, diga? Há tempos não me dás notícias. Ainda magoada com teu velho amigo? Não maltrata-me assim, guria. Sabes que minha doença é hereditária e que morrer antes de ti há de ser triste só para mim, que não vou te ver vingar como tens feito. Pra isso mesmo é que te escrevo. Eu é que sei dizer o quanto te fui feliz, morninho de início até ferver-te os ossos. Perdoa os meus dias infinitos, minhas benditas segundas-feiras, os meus minutos que não prolonguei e os meses que não estendi. Perdoa o calor e o bom-humor que te pus no corpo contra a vontade, e perdoa-me muito pelas coincidências a que te submeti. Perdoa essas minhas pessoas que nasceram em tua vida durante a minha, e as que morreram sem nenhum de nós querer. Perdoa as músicas que foram tocadas e que hoje desmancham teu riso, perdoa, sim?
Estou cansado, bom anjo. Sabemos dos nossos motivos, não? Cansei-te demais também. Mas o que vi e que vivi ao teu lado o infeliz do tempo jamais apaga. Juro que fiz de mim o maior dos sóis no teu aniversário, mas cresceste um de mim a cada dia. Lamento que sinta-se tão velha e tão afobada pra o amanhã, e mais ainda que chores tanto nas despedidas. A parte de ti que mataste se enrola no túmulo para criar as esperanças, e você aí, sumida, enfiada no teu canto como que a evitar-me. Amei-te e odiei-te muito, meu doce, mas é que nossa personalidade em tanto se parece que vivíamos a bater de frente... Passe bem o teu Natal, e olhe para o céu no dia 31. Se procurar direito vai ver-me indo pra onde meus antepassados se foram: pra dentro da tua memória. E saiba que é da natureza fazer-se em ciclos, não renegues do teu, não quando tudo está tão encaminhado. Tu és linda e grande, e um tantinho menos efêmera que teu andarilho aqui. Segue teu caminho que amanhã vem o depois. 
Sê boa a ele como me foi, e reze pra que ele lhe seja doce. 
(Ah, e não é culpa minha que teu país foi pegar o tipo 4 da dengue justo em mim, dá-me o desconto).

Beijo do coroa enxuto,
Teu ano velho.

Do galpão de sonhos findos; 27.03.11

Há no palco um solista,
Senhor de todos os mares
De acordes e fitas de cores
Das dores, que vem em pares.

E que, quando canta, enfrenta
Ares de contra-vapor
Noites, fagulhas, tormentas
E que ainda assim, diz-me: "Tenta!
Que se respiras, sei pr'onde vou."

Diz-me assim tão baixinho...
Um toque de almíscar no tom
Um cheiro novo de vento, prometo ainda que tento...

[Mas se me atento há um caminho
Escrito com outro sotaque
(Um baque
No som)].

Soletra um blues com meu nome
E em rimas, sonha comigo,
- E pobre daquele piano! -
Que no tênue tempo d'um ano
Dedilha mil fás sustenidos,

E me ama um pouco mais.

Ao fim, não sei se flutuo
Ou se parte do anil é quem desce
Sei só que encontro-me posta
Em canto que não na encosta
Da atmosfera terrestre.

E as pontas de meus cegos dedos
- Tremelicam, (em segredo)
E se dedilham, às tantas,
Os fados dos seus (desma)zêlos,
Se perdem nos pontilhados
Das dobras de seus cabelos...

Aos velhos marujos; 01.04.11

Uns causos contados
ao som do quebrar
de marés, feitio maldito
aos desavisados,
aos cheios da fé

e o fumo queimando
o tempo perdendo,
tomou-se o encanto
por contentamento

Risos - que graça!
a história encoraja outra dose
(algum marinheiro tosse)
e a sorte parece ter cor
de baralho;

Eis que resvalam no conto
d'um senhor capitão
cujo nome perdeu-se;
 (talvez coisa da embriaguez
que a vez carcome)

meados de noite
nascido e criado
por moças da vida
partilhando celas
com pretos de forças
e caravelas altivas
guri de fé parda
 que assim que viu barba
em cores nascer
mil pais degolara
três mil namoradas
surgiram matadas
fundidas nas águas de seu desprazer

fluente com facas
"Ai de mim! se faças
meu rastro valer -
gritava o tal bando
- segui-lo é pra quando
o tal julgar merecer!"

desdenhador das levadas
prostrado entre anáguas
veladas que o sol afogava ao poente
queimado por fogo
de seu próprio corpo
talvez meio torto,
a desfalecer
que em mente jazia tamanha maldade
qual humanidade
cumpriria façanha de o ser?

sovina de tudo
sozinho e escudo
das proas- esculpidor
fazendo dos lemes a cavalaria
um homem morria
a cada Termidor

e em terra, por última vez
fez Guerra à pouca bonança
- sangrou, fundiu-se ao cais, -
 e a lua da temperança
baixou ao Sul do Mar Morto
por ora vermelho
por ora velho e brejeiro
sem seu bucaneiro- Rei
livre de pecados
por risonhos fados
agora era tido por fora-da-lei.

Bons anos em ondas curtidos
e em anos, homens contidos,
à espera de seu capitão
posto mortal por banal
bola de canhão

que riram, os arruaçeiros,
dos sentinelas guerreiros
honrados de seu infeliz
já qu’ homens chamados vis,
se não defuntos em tempestade
fechavam vivência servis
(entre baldes e barris)
c’o ganho
da idade.

(Este lado para cima); 05.04.11

Vai
Vai, mas guarde as cartas nos sapatos
Que tanto fiz para perder, debaixo da cama
E não consegui

Vai e enquanto ainda vai,
tropeçe uma vez ou duas
faça feliz minha vaidade
em ver-te cambalear
Deixe eu pensar que é falta de mim

Vai e me arranque os dedos
Um por um
Das costas dos seus braços finos
Me belisque se necessário
Pise no solado
Do sapato outra vez

Mas vai
Vai como veio, solto
Ou como fica ainda encolhido
Na trincheira do meu portão
Que range e rosna, coçando
As suas pulgas e percevejos

Vai
E compre CDs melhores
Para suas próximas cônjuges
(não as chame assim)
Mas continue criando gírias
E nunca deixa puberdade alguma te mudar a voz

Vai na chuva e sem correr
Faça o favor de evitar as curvas
Pra que eu sempre possa lembrar
De que você está me esquecendo


Vai porque o relógio desfiou os ponteiros
Pra dar logo a sua hora
E eu não sei costurar

Anda, vai, não se demore com despedidas
Não quero olhar no calendário
Que dia é hoje

Vai!
Não sei manter a postura
Caminho chutando latas
Procurando pedras
Enlameadas
Com marcas de sapatos
Que por pouco você não acha
Debaixo da cama
Cheia de quinas e restos de cartas.

Dos que vêm no sono; 17.01.11

Ando perdendo-me tanto, e que coisa mais louca é andar pelas ruas de São Paulo sem saber dar-lhes nome, e ainda assim conhecê-las de alma! Ver nos olhos do metrô os reflexos de tantos corpos jogados aos trilhos, tantos pensamentos na lixeira esperando sua deixa, sua vez, seu dia de glória, que será o último. Ando lendo muito menos do que gostaria e ainda assim tanto que não me resta tempo para guardar nos confins da memória o que penso de cada serena linha, de cada parada brusca que sinto ao fim de um ou outro parágrafo. Ando sentindo tanta raiva não canalizada, tanto amor despreparado, e que amor vem pronto, menina estúpida? Mas mesmo assim, ando com tanta preguiça de desvendar isso e aquilo outro que chamo de mistério, de aprender a me virar com as oitavas do piano, tão desmotivada com minhas próprias dimensões. O mundo anda tão coitado, e de tão inofensivo anda tão austero! Não tenho braços para envolvê-lo nem nome para chamá-lo: é mundo e pronto. Tenho tido isso de me arrepiar por qualquer bobeira, de não chorar por anos inteiros, de prometer mil coisas e morrer dormindo. Ah, que tipo de ser não se diz um fugitivo eterno, uma laranja mofada cheia de culpa por estragar tudo que toca? Quem é que ainda tem fé -que me venda - porque quem é que ainda dá por ter demais? Eu ando me fazendo de desentendida, ando sorrindo como quem sabe a fórmula para se conseguir dinheiro e quem nunca teve sequer uma noite mal dormida. E vocês, pedaços de qualquer coisa, morrem de comodidade com o drama alheio. Ah, pois não, a senhora quer ser salva da própria incredulidade? Fila 3, por favor. Cinquenta anos de espera, se pegar a senha rápido.
Ando desesperada com tanto desmazelo, tanta frieza no toque, tanta palavra como fogo de artifício: uma só vez no ano, aos olhos esperançosos de mil idiotas, e que acaba por virar fumaça fedorenta, os envolvendo e encaminhando à mesmice de seus objetivos ultrajados e utópicos. Procuro em todas as direções um pé de amora novo, um bocado de clareza, e é tudo tão longe, tão grande!
Eu ando, e isso você não espalhe, querendo ter quem me ame, só pra ter com quem dividir tanto mundo. Mas acontece que ao mesmo tempo que sobra mais da minha metade, estou cheia até os cabelos de contas a pagar, afazeres e obrigações sociais afoitas. Ando achando muito e fazendo pouco, ando ansiosa e deprimida com meu fracasso em tantos sentidos, minha repetição, a sensação de ser reprise do último capítulo da novela(aquele que todos viram no dia anterior e que só serve aos mais desatentos e entediados).
Ando saindo por dizer que tenho muitos compromissos, e inclusive comprometida demais com cafés e revistas manipuladas pelos grandes para fazer a cabeça do resto. Ando cansada, fatigada de ser resto, e com uma preguiça danada de lutar pra me fazer do outro pólo. Mentir ou ser mentida? Bah, ando comendo pouca fruta, fazendo exercício nenhum, assistindo filmes cheios de Jack Blacks e Adam Sandlers - e ando desprovida de culpa por fazê-lo. Na verdade, ando de saco cheio. Sei tanto o que quero que não mais vou à Igreja, e valorizo tão mais meu suado dinheiro quanto aprendi a não gostar de como os olhos humanos o priorizam. Ando vendo muita televisão, e contabilizando nos fios de cabelo a irresponsabilidade geral e suas consequencias envolvendo quedas de barrancos e o que quer que seja. Aliás, precisava morrer o pobre do cachorro? Ando gostando muito de gatos, mas a culpa de tudo isso é de todos menos do animal, vítima da baderna e caos em que se encontra o mundo. E esse, caminhando pra um colapso que se adia, só em nome de me fazer andar e andar e sentir que não saí da rua. Aquela mesma de São Paulo, onde me encontro agora, cavoucando na mente meias palavras e meias verdades e contentando-me com a ânsia de fazer papel qualquer uma delas: por ora, isso me faz feliz.
E se quer saber, eu ando mesmo é atrás dos meus bocados de alegria, ilusória ou não. É que tenho andado demais.

Retrato das seis da tarde; 12.05.11

Ó poeta, aqui te canto
D'um maço de tinta e aço,
Que vi, poeta, vi hoje!
O mundo em seu embaraço

Vi flores à venda, e vendi-as
Pequenas, poeta, afogadas!
Que mundo engraçado o dos homens,
Das plantas que nascem nas águas!

E vi! Vi do Sol despontar um poente!
Poeta, fiz mais que ver gente,
Ouvi gente dessa vida.

Cada qual um passo à frente
Na arte da eterna partida,
E como caminham depressa! - nessas findas, lindas idas!

De como começam os belos dias; 12.04.11

Passa o menino na bicicleta
Tira um fino na canela
Da senhora que, com muito esforço
Sobe as escadas do ponto
Levanta de cá o corpo, ela é puro osso
E vontade de cantarolar

Passa de novo, toca o sino
Que menino danado de leve
Provoca o jornaleiro e se deixa levar
Atrasa um ponteiro e meio
Do relógio da praça
E você agora refaça
A ordem do nosso curto versar

O trem custa a passar
A hora embola na motoca do sorveteiro
Passa o menino sorrateiro
Faz careta e derruba a sacola
A senhora faz troça da cor de camisola
Da outra que vem ajudar

A rua amanhece, a contragosto
O posto ainda tem um céu
Respingado de selos
E chicletes moldados em fita
A dita senhora acena
O poema vira emblema
Na bicicleta do menino                                                                                                                          
Que ainda vai passar.

Ao amor que eles remetem; 01.2011

Uma vez arte,
Não mais se parte
Um pincel faz figura,
E a pintura o papel transfigura
Ouviu dizer?
É poeta
Disperso entre versos e expressos
Ratinho de biblioteca.

Ela quieta,
Moça do brinco de pérola
Mil falcatruas as suas,
E o nome já pousa aquarela
Arabella
Asinhas avulsas, mãos quase nuas
Ao pousar a janela.

Do que sei de estar no encalço,
O menino é Buarque,
E talvez seja coisa da paz
Que eu sei que ela traz:
Na estrofe cantada da Espanca
No cadinho de sua dança,
Na ternura de sua lembrança!

Casal esperança
Pra arte que os faz.

Crônica da barata

Havia uma barata no chão da Igreja.

Sinal plausível de pouca higiene local, talvez a verba ande pouca, quem é que não contribuiu no dízimo? Vai indo, espertinho, que daqui uns anos o diabo lhe carrega. Mas a tal passa batida, esquiva, um tanto quanto obediente à expressão do "mais perdido que barata tonta". Expressão aliás usada no descaso triste de quem a permite: não bastasse imundície, também as pobres tem de ser parâmetro de comparação à tontura? Qualquer bon vivant que o afirme nunca quis amar uma barata... Esquivas, boas de subirem em perna de mesa e em dobras de livros do Kerouac, tudo para fugir das vassouradas, uma guerra de espécies. E o Domingo está de súbito movimentado, diz se não é amor? Os tremeliques, suadeira, pega, pega! Pega coisa nenhuma.
Tonto é quem tenta.

Agora, se os fiéis de nossa doce paróquia eram ou não adeptos de persegui-las, só podemos imaginar. Talvez por seus corações encontrarem-se devotos ao sangue do Senhor, talvez por ocuparem-se com a agonia da blusa vestida do avesso pelo senhor à frente, ela os ia atravessando por baixo. No céu não há baratas.

Mas havia uma barata no chão da Igreja, bem às vistas do senhor Jesus Cristo ali crucificado, às vistas do padre que entrou cantando, da procissão de senhoras com sérios problemas de dicção que seriam claramente requisitadas nas leituras de cartas de São José de Piraporinha do Bom Senhor. Frenética, provavelmente com medo daqueles olhos sangrentos, olhos que a acusavam de estar atrás de pão quando nem só de pão vive o homem. Cabe lembrar que baratas e homens por vezes se confundem, já que a ciência conseguiu interpretar aquela parte da Bíblia de que animais não tem alma e homens são animais... Jesus era um cara implícito.

A barata se perturba com a música alta que toca, e liga o radar de fuga ao ver mil braços erguidos. Folhetos abanam, uns gritam, há uma criança que chora. Essa chora sempre, é de praxe. Pensa se não é hora de voar. Um tanto complexada, verdade, mas não pode-se julgá-la: poucos insetos saberiam discernir demonstrações mundanas de louvor de intenção de extermínio. Ela então se levanta, ajeita, rebola, decola, paira. O alvoroço adio para outro conto, ou assumo que alguém já o tenha contado em história pagã qualquer. Saiba que a vassourada que ela recebeu, nem o Papa ousa lembrar nos momentos de redenção. Foi uma morte triste e feia.

Mas não chore ainda. Vendo-a ali, caco de barata, o Padre guardou o dedetizador e convidou os demais a rezarem um terço em sua memória. Falam até em missa de sétimo dia, ó, pobre criatura do Senhor, levada tão cedo. Eu particularmente resolvi registrar o causo porque me apeguei à pobre - uma ocorrência não tão frequente no mundo das baratas, visto que as mesmas sumiram com a carcaça assim que o zelador abriu brecha.

Ouvi dizer que agora, já estão querendo beatificar a barata.

domingo, 14 de agosto de 2011

Soneto da penumbra; 22.05.11 – 23:00


Na noite densa, traz de pérolas um candelabro
Maldiz terrena seiva de belezas muitas
Mas como brilha, como o tempo não é comemorado!
Quando a noite tarda e não escura...

Então faz fogo e clama que se é luz, é pura
Beija o céu molhado, canta minha tristeza
Conta à Lua que o céu não sabe pureza
Que nada no mundo remete à ternura

Que sou, que penso, naquela relva falha,
Que pareço enquanto a pérola me altiva
Pois amor, aviso, a manhã aproxima,

E se o encanto da Princesa a meia-noite leva
A escuridão encobre só o que demora
E o que o Sol não seca o desgosto finda.

Soneto de contemplação; 02.08.11 - 15:00

Que tem de doce a vida quando em mim explode? 
Um chumaço do frasco da minha ferida 
A cada dia morre como incandescência 
E como cala o dia quando precipita... 
 
O meu amor todo verso encomprida 
A cada nova estrofe, de querer somente 
O peito morde, e o calar da vida 
Canta os veraneios de novo afluente.  
 
E agora tola, e feliz tola ou muda 
Muda dos versos que já não me descem 
Ou das miúdas coisas tolas que semeio; 
 
Porque o silêncio conta a coisa aguda 
Dos que sentem tanto, e que se não fenecem, 
Fazem da vida a agulha no febril palheiro.