terça-feira, 5 de junho de 2012

Retórica capitalista; 02/05/12


Mais veras as faces nos cruzados! 
tu jazes, fera, entre crustáceos,
e um a cada três de teus amigos
nasce fera e por vinténs é corrompido

tinhas na arte por costume una virtude
e um alento era ao salvá-la, em pecado
desse último livrar, amiúde
toda presa da vil sina de predado

vês no entanto o que diz vosso dinheiro?
louvai a Deus, buscai a liberdade,
mantém a idade de contribuinte

pois é mau visto o dom de não ser feio
por dentro; eis que no externo vale a idade
ser fera ou nada: já se não distingue. 

Dois Poemas de Beira de Estrada.



Sambinha estrangeiro; 14/05/12 – 21:00



Me quis inteira,não me quis por mim
Como se eu fosse feira só pra tua rua
[como se eu fosse feira!]
e minha oliva feia por não ser jasmim 


e o verde no laço de fita que tão bem lhe fica
fosse menos verde por não ser carmim. 


Lá pro seu cinema
uma obra-prima 
que só se explica do meio pro fim
não tem cabimento
e faz você tão bem... 


melhor ouvir o vento.
Não me quis assim.


Tão fácil prometer amor a quem não tem.
-
Madrugada; 11/05/12 




De nada adianta meu corpo no teu,
à noite, às periferias!
é o beco o teu bosque, é a mágoa tua praia
te risco descalça do meu pensamento
coloco a cintura nas calças
pondero teu desbalanço...
pudera! o céu dessa tua cidade é hotel sem estrelas.

depois, 
manhã de lavanda,
pressinto nas coisas que caem dos olhos
enquanto ainda fechados
que o teu coração é pigarro do meu

ensaio um sorriso: 
até desvario meu
bagunça teu rijo critério

e qualquer sinal de improviso
[como eu fugir do soneto]
lhe cheira a mistério...

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Cartão Postal; 11/04/2012 - 23:09

O eu-lírico ainda nem tem forma
quando me volta à mente a plataforma
de Congonhas


É mal-pago, sonegado,
teve o peito violado por dinheiro?
cardíaco, fumante passivo
sujeito aborrecido
com política?


Tem veia artística.


Digo pela barba que ele veste, pelo homem que ele traja.
Porque viaja.


Para eu-lírico é mais eu do que lirismo


e se distraio, ele é história
e se ele fica, depois do tempo,
já não me importa.

terça-feira, 3 de abril de 2012

A Santa e o Conde.

Subiu às tontas a escada, tendo deixado a sala num rompante e sendo deveras alto - o sangue, se não custava a percorrer o fígado cirrótico, era vadio em se tratando de encéfalo.  Bufou duas vezes à porta antes de vê-la propriamente: o que parecera trabalho de fino entalhe no instante de delírio revelou-se apenas bolor e leveduras ao redor do puxador rústico, da maçaneta enorme. Torceu o nariz. Nada fedia, mas sufocava e sentia asco.
Entrou. Em primeiro, pensou estar novamente mal das circulações e apoiou-se à mão, flácido, febril; mas tão logo aconchegou os olhos, viu que a luz foi que o atordoara. Não que brilhasse o Sol num tom de meio-dia, pelo contrário! O quarto era de pé direito baixo, quase que galponesco, e todo o seu frescor se dava por conta de uma única janela aberta para o lado de fora, que o vento contornava cantando mesmo ao bater da porta. Não, a luz que preenchia o cômodo e o enaltecia era difusa, denunciava a sujeira do ar e denotava até um certo cintilado, como nevasse e os ciscos refratassem muito.
Havia uma mesa deteriorando-se à esquerda e seus pés estavam encalçados com argila, dando-lhes um aspecto gaudiano, élfico. Sob eles uma diversidade enorme de cores endurecidas, têmperas, manchas de tinta que lhe remeteram a sangue e ao colo de sua noiva na noite do dia primeiro, assentado em rubis. Era agora mais calmo e arguto; andava um tanto e voltava, recolhia o braço após tocar alguns dos toldos quentes pelo dia, aveludados; imaginava um divã, natureza-morta... Sentiu-se feio. O chão de tábua corrida, os pinceis num vaso de violetas, tudo era da mais degenerada beleza. E ele, ainda empertigado, parecia muito ordinário, muito justificado. Olhou os pés e estes causaram tamanha náusea que careceu despi-los.
Enquanto num esforço ridículo, acocorado, suando pelas penugens do bigode, sentindo olearem-se as orelhas e lábios – lambendo-os muito -, olhou para trás. A atmosfera etérea e bucólica não permitia haver distinções mundanas como luz e sombra, som e silêncio: tudo era fosco e brando, e branco. E então, ela. Ela que não sorria nem flertava, ela emergindo, parando a música que por anos a fio tocara em sua cabeça, imperceptivelmente. Ela pisando descalça uma barata e acendendo nervosa um cigarro, ela que estancada ainda pairava, cujos olhos indagavam obscenidades, sem que ela soubesse. Entornou o rosto.
O silêncio litúrgico o tensionava, à medida do possível. Era como tivesse a garganta pressionada por um raquítico sádico. Por que ela o olhava apenas, quem era, para incumbi-lo à tarefa de olhá-la de volta? Viu-a vacilar e quando os pensou semelhantes, caiu de vergonha. Chorava. Sobressaltado com a constatação, caiu de novo; fazia barulho e sabia, já não era o homem que o fizeram, já não era Murilo, jamais o pai o amara, nunca cumpriria sua promessa.
Pensando-se risível, depois coitado, demasiado compreendido, procurou por seus braços. Ela sentou-se como uma criança e há de ter dito alguma coisa – talvez já estivesse sentada ali desde a infância, esperando por ele e sua menarca de choro. Talvez tivesse buscado quem despir naqueles modos, talvez todos os quadros em redor pintassem olhos como os dela. Chorou mais forte.
Ao fim, enquanto ele apegava-se às feridas, ela fez-se ereta. Lembrou-se de quando subia as escadas e sufocou novamente, mas não o expôs. Se antes retorceria a boca, mimado e virgem, agora a mordia e cessava. O tempo continuou passando deliberadamente sem que qualquer um dos dois sentisse e sem que voltassem a reconhecer a presença do outro, ela muito tranquila, alheia; ele num contato penoso com o próprio racional. Aliás, o tempo dali em diante seria sempre o daquela sala, por mais que não o soubesse Murilo. Sempre liquefeito e turvo, muito fácil de acompanhar, e também muito triste e vago.
Poderiam viver de sonhos, não fosse ela, sempre quebrando suas conformidades e brincando de bater por acarinhar. Saiu, muda. Saiu muito certa e foi como jamais tivesse existido, sem que a ouvisse, sem que ele mostrasse a ela seus novos olhos, suas teses, seus anos. Saiu e enquanto saía, ele rezou calado para que a música não tornasse, constatando desolado em seguida que ela já o fizera: só custou-lhe um pouco para percebê-la clara. Doeu-lhe o peito a consciência de o tédio da que o deixara dever-se a essa capacidade louca dos sábios de prever o mundo. Calçou-se.
Murilo desceu as escadas sem quaisquer sinais de taquicardia – procurou-a, até, respirando um tanto rápido, pulando mais de um degrau por vez. Sabia entretanto da inutilidade do ato, e bufou. Nunca mais sentiria nervoso, o existir era insolúvel, a verdade salvara sua saúde. Lembraria ainda por duas vezes da tarde nobre, dos braços cálidos, do nevoeiro. Depois, música.  E nos livros, culparia a vida por tê-lo desiludido. 

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Estudo I sobre tempo e espaço; 11/02/12

Em gesso molduras, em mim vestígios,
Num tear obscuro emoldurado
Passam fotografias nuas
Que mudas riem do passado


Que sofro eu! na pétrea sala, aflita,
Quando à varanda tudo em instante migra
E à parede, jovens parentes
Mortos riem do presente


Minha vida ao futuro devo
E um desenlace do viver espero
Sorrir à isso, quer maior perjúrio?

Mas se ao conforto um instante cedo
Deixo às fotografias, por seu tempo estéril
O direito de zombar do futuro.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Porque me amedrontam os equinos; 16/01/12 - 14:42

Não creio que minha birra por clichês mal aproveitados possa impedir-me de começar a descrição daquela tarde pelo céu. Não fosse por aquele céu, aliás, eu não seria capaz de vencer birra alguma - o azul me faz flexível. As nuvens estavam pingadas, como a tinta branca do pincel estivesse seca. No dizer, soa como algo arrastado, mas quando eu as fitava tinha a impressão de assistir ao rebolado do mundo. À época, éramos pequenos, terríveis. Março, Carlo e eu vínhamos correndo, ensandecidos, o rosto e o riso entregando qualquer pecado juvenil que cometíamos ansiando o inferno. Se não me trai a memória, havíamos soltado os alazões do Menelau - e deste corríamos mais do que daqueles. Sentamos enfim sob a mangueira, os meninos enxertados no suor salgado um do outro, atracados por todos os braços, cúmplices nesse mundo e em qualquer outro. Eu era a mais velha, e apesar de mais madura, era também a mais inconsequente. Tinha medo de aborrecê-los e de tornar-me aborrecida como as meninas mais moças, como Isabel, como qualquer uma que ficasse a coser e fazer caras à porta de casa em vez de divertir-se um pouco. E nessa falta de senso de minha personalidade, eu os trouxera, propositalmente, à porta do quintal de uma das casas mais antigas do interior de Minas; e com certeza a mais mítica na boca das crianças.
Quando apontei para a sombra no morro adiante, senti que tremiam. Mas eu os conhecia, sabia que fariam o que fosse por mim e para causar impressão, tão competitivos que eram. E também que aos onze anos, qualquer pequeno arrisca o corpo pela curiosidade. Por capricho, revivi em palavras, puxando pontas daqui e dali, todas as histórias que se ouvia da casa, pondo um mistério tão atrativo em cada pausa que podia ouvi-los ofegando de excitação. "Há uma velha", eu disse, "e dizem que desde os tempos da mineração, já matou mais de mil homens. Faz feitiçaria. Sob essa mangueira aqui, enterra os olhos, para que assistam às maldades maiores." Levantaram-se num pulo. Imitei-os. Ficaram frenéticos, com medo de mim. Corremos pelos arredores, eu com minhas pernas terrivelmente finas e compridas, eles tendo em seu favor o desespero. Quando demos por nós mesmos, era noite. O céu amontoava nuvens agora, como elas houvessem dado a volta à Terra e parado no mesmo ponto. Temi que chovesse, estávamos longe de casa. Não temi por muito. Logo a água era tão encorpada que era como caísse de baldes e caixas cheias sobre nossas cabeças. Segurei-os pelas mãos sem nem saber para onde os trazia, só querendo enchê-los de mãos, ser-lhes mãe e irmã como me era devido.
Quando chegamos o céu era vazio, tão seco que só o escuro o disfarçava. E nós, como lesmas desfazendo-se, pingávamos lágrimas de terror e torcíamos a chuva de nossos corpos. Deixei-os em casa e assim que desci a escada, pude ouvir em alto e bom tom que Dona Candô não mais me deixaria vê-los. Apanharam, apanharam de chorar e dedurar irmãos, de jurar por Deus. Esperei que subissem, que a luz se apagasse e os soluços silenciassem, e só então saí.
O que depois aconteceu, apesar de importante, é história. Isabel quis ajudar o Fúlvio a cuidar da chácara, que a mãe já estava chocha – era sua vez de descansar. Quando soube do acontecido, entretanto, eu já morava em Belo Horizonte e estava para acertar as contas na casa da Tia Júlia e ir buscar emprego. À noite me encontrava com o radialista mais cafajeste que pisou o mundo, mas que por mim arrastava um bonde. Bel diz que ela quase pariu o quarto filho, que duvidava das minhas cartas e que por causa minha os meninos tinham crescido errados; parece que são hoje bons ladrões de carga. Disse também que afinal, havia uma velha, mas que morrera pouco depois do ocorrido e só por agora lhe acharam os restos. Parece que teve um siricotico depois de uns cavalos em fúria terem pisoteado o pé da mangueira. 

domingo, 18 de dezembro de 2011

Decrescente; 15/12/11

Que chuva é essa que aqui me toma?  
às costas toca enquanto enxuga o rosto 
e jamais, jamais desemboca 
além de meus bolsos. 
 
Riscando à unha o céu minguado, 
tende ao meu lado mais exasperado 
mas pela rua passa, por mim... 
e numa poça pousa. 
 
Que chuva que jamais acaba!, 
tanto me lava que já não a sinto 
mas por razão qualquer não me encharca 
toca apenas, e suo, e pingo. 
 
Desritmada como esse poema 
faço-me pequena e tombo a cada passo 
como o silêncio da chuva fosse 
embaraço ou pena.