sábado, 19 de novembro de 2011

Como fazer da coisa a causa; 26.09.11


        Estive sempre pensando no além-mar durante meus anos naquela cidade amoitada; queria estar na frente da batalha e não entre os guardiões do porto, os inválidos e invalidados, os invariáveis. E era tão intrínseco à minha mente de menina pegar o jeito dos outros, que até querendo contrariá-los me perdia: acomodei-me com a verdade de uma fuga enevoada quando mulher. Nunca, nunca saberei se o crescimento que lá tive me foi o natural ou se fui como a semente em seu estado de dormência, para o despertar na primeira brisa de primavera. Verdade seja dita não aconteceu nem d'um jeito nem do outro - meu dia de pegar em armas chegou antes de pronta a armadura. Já era tempo de enveredar por algum caminho, de não só olhar nos olhos do futuro, mas também contar em seus cílios meus anos de prosperidade prevista. Senti medo; senti antes de tudo vergonha de ter-me colocado em pé de igualdade crítica a tantos Napoleões e Leônidas, como se tivesse matado um homem e não somente visto a cor de seu sangue contada nos livros por eles vividos. Eu era teoria. Era um sumário e os portões se abriam já querendo a trama do prefácio feita, e boas ideias para um desenvolvimento. Meu barco era maior que os outros, e os homens que eu impressionaria imponente pisando-o eram bocós de uma aldeia seca demais para fazê-los babar. Em nome deles eu havia me tardado tanto a tomar prumo, a cortar o cabelo como faziam as gueixas, mas sem perder a franja indígena que tão bem me caía. Não, eu não era honrada, não era digna. Mas pensando assim é que meus conterrâneos haviam hesitado; por que lutar pelo que não mereço, quando existe o pôr-do-sol no cais? Deixe-me contar um segredo, mesmo não tendo cacife para tal: viver de felicidades passivas é como dar a um homem com sede um pedaço de pão. Pela primeira vez choveu e vi minha pintura desmanchar-se. Senti que as roupas pesavam, mas meu corpo tinha curvas e meu rosto tinha vincos, e mesmo sabendo da espera que me aguardava antes de poder zarpar, já ia contando tripulação.
        Era meu o vento que ansioso perguntava: “para onde devo ir, e como? Assim mais manso?” E combinávamos bobos uma tempestade por mês, seguida da calmaria de destroços muito inteiros, de passados tão consistentes que para sempre boiariam sem atracarem ou afogarem-se. 
Porém há mais na terra do que espera um sonho. Numa manhã de mormaço, fui à prancha, mas minhas costas doíam da parábola da demora, e virei-me para ver, e ver se me fazia falta, o tempo dos conselhos e das contrações no peito. E me vi caminhando na direção contrária ao meu destino antecipado e glorioso, em nome d’uma andorinha gorda que tentava em vão alçar vôo. Dela sim já era hora, logo até essa teria passado, e mesmo sem sabê-lo ela punha as asas em riste; como em uma engraçada posição de ataque. Pus minhas mãos revolvendo-a, mas depressa a soltei e fui seguindo seus pulos boçais até onde se construía os barcos todos. Minha ilha era cheia de guerreiros, de gente que nunca havia chorado apesar do calor ou da rotina. O caminha para minha casa tinha roseiras espinhentas como a adolescência de tantos que não se amotinavam dos amotinados, como eu tão bravamente queria fazer, e para ver o pôr-do-sol era preciso subir a pé três horas de ruas íngremes. A maior conquista de Napoleão teria sido mais atenção da parte da esposa, e nesse dia meus olhos se abriram tanto com tais constatações, que foi meus cílios que contei. Resolvi ficar. Não peço desculpas ao vento, pois em seu lugar eu consideraria minha traição ultrajante, mas querido, leve ainda o barco. Faz questão de destroçá-lo e fazer lembranças eternas dos nossos grandes planos. Escrevo daqui sentada, já de antemão avisando que não nasci para a guerra e que não sei do que estou falando. Mas anteontem decidi que vou morar com os índios e aprender com eles a fazer tranças espinha-de-peixe, e a batalhar mesmo assim, que seja por um pouco de chuva na cidade, que seja por um espírito menos veloz;
       Que seja não só para quebrar a dureza da semente, mas para levá-la adiante até que floresça, até que espinhe, até que eu saiba tudo de mim e possa então ir a mar aberto. Torçamos para que eu não esteja gorda demais para tentar. 

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