terça-feira, 3 de abril de 2012

A Santa e o Conde.

Subiu às tontas a escada, tendo deixado a sala num rompante e sendo deveras alto - o sangue, se não custava a percorrer o fígado cirrótico, era vadio em se tratando de encéfalo.  Bufou duas vezes à porta antes de vê-la propriamente: o que parecera trabalho de fino entalhe no instante de delírio revelou-se apenas bolor e leveduras ao redor do puxador rústico, da maçaneta enorme. Torceu o nariz. Nada fedia, mas sufocava e sentia asco.
Entrou. Em primeiro, pensou estar novamente mal das circulações e apoiou-se à mão, flácido, febril; mas tão logo aconchegou os olhos, viu que a luz foi que o atordoara. Não que brilhasse o Sol num tom de meio-dia, pelo contrário! O quarto era de pé direito baixo, quase que galponesco, e todo o seu frescor se dava por conta de uma única janela aberta para o lado de fora, que o vento contornava cantando mesmo ao bater da porta. Não, a luz que preenchia o cômodo e o enaltecia era difusa, denunciava a sujeira do ar e denotava até um certo cintilado, como nevasse e os ciscos refratassem muito.
Havia uma mesa deteriorando-se à esquerda e seus pés estavam encalçados com argila, dando-lhes um aspecto gaudiano, élfico. Sob eles uma diversidade enorme de cores endurecidas, têmperas, manchas de tinta que lhe remeteram a sangue e ao colo de sua noiva na noite do dia primeiro, assentado em rubis. Era agora mais calmo e arguto; andava um tanto e voltava, recolhia o braço após tocar alguns dos toldos quentes pelo dia, aveludados; imaginava um divã, natureza-morta... Sentiu-se feio. O chão de tábua corrida, os pinceis num vaso de violetas, tudo era da mais degenerada beleza. E ele, ainda empertigado, parecia muito ordinário, muito justificado. Olhou os pés e estes causaram tamanha náusea que careceu despi-los.
Enquanto num esforço ridículo, acocorado, suando pelas penugens do bigode, sentindo olearem-se as orelhas e lábios – lambendo-os muito -, olhou para trás. A atmosfera etérea e bucólica não permitia haver distinções mundanas como luz e sombra, som e silêncio: tudo era fosco e brando, e branco. E então, ela. Ela que não sorria nem flertava, ela emergindo, parando a música que por anos a fio tocara em sua cabeça, imperceptivelmente. Ela pisando descalça uma barata e acendendo nervosa um cigarro, ela que estancada ainda pairava, cujos olhos indagavam obscenidades, sem que ela soubesse. Entornou o rosto.
O silêncio litúrgico o tensionava, à medida do possível. Era como tivesse a garganta pressionada por um raquítico sádico. Por que ela o olhava apenas, quem era, para incumbi-lo à tarefa de olhá-la de volta? Viu-a vacilar e quando os pensou semelhantes, caiu de vergonha. Chorava. Sobressaltado com a constatação, caiu de novo; fazia barulho e sabia, já não era o homem que o fizeram, já não era Murilo, jamais o pai o amara, nunca cumpriria sua promessa.
Pensando-se risível, depois coitado, demasiado compreendido, procurou por seus braços. Ela sentou-se como uma criança e há de ter dito alguma coisa – talvez já estivesse sentada ali desde a infância, esperando por ele e sua menarca de choro. Talvez tivesse buscado quem despir naqueles modos, talvez todos os quadros em redor pintassem olhos como os dela. Chorou mais forte.
Ao fim, enquanto ele apegava-se às feridas, ela fez-se ereta. Lembrou-se de quando subia as escadas e sufocou novamente, mas não o expôs. Se antes retorceria a boca, mimado e virgem, agora a mordia e cessava. O tempo continuou passando deliberadamente sem que qualquer um dos dois sentisse e sem que voltassem a reconhecer a presença do outro, ela muito tranquila, alheia; ele num contato penoso com o próprio racional. Aliás, o tempo dali em diante seria sempre o daquela sala, por mais que não o soubesse Murilo. Sempre liquefeito e turvo, muito fácil de acompanhar, e também muito triste e vago.
Poderiam viver de sonhos, não fosse ela, sempre quebrando suas conformidades e brincando de bater por acarinhar. Saiu, muda. Saiu muito certa e foi como jamais tivesse existido, sem que a ouvisse, sem que ele mostrasse a ela seus novos olhos, suas teses, seus anos. Saiu e enquanto saía, ele rezou calado para que a música não tornasse, constatando desolado em seguida que ela já o fizera: só custou-lhe um pouco para percebê-la clara. Doeu-lhe o peito a consciência de o tédio da que o deixara dever-se a essa capacidade louca dos sábios de prever o mundo. Calçou-se.
Murilo desceu as escadas sem quaisquer sinais de taquicardia – procurou-a, até, respirando um tanto rápido, pulando mais de um degrau por vez. Sabia entretanto da inutilidade do ato, e bufou. Nunca mais sentiria nervoso, o existir era insolúvel, a verdade salvara sua saúde. Lembraria ainda por duas vezes da tarde nobre, dos braços cálidos, do nevoeiro. Depois, música.  E nos livros, culparia a vida por tê-lo desiludido. 

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