segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Crônica da barata

Havia uma barata no chão da Igreja.

Sinal plausível de pouca higiene local, talvez a verba ande pouca, quem é que não contribuiu no dízimo? Vai indo, espertinho, que daqui uns anos o diabo lhe carrega. Mas a tal passa batida, esquiva, um tanto quanto obediente à expressão do "mais perdido que barata tonta". Expressão aliás usada no descaso triste de quem a permite: não bastasse imundície, também as pobres tem de ser parâmetro de comparação à tontura? Qualquer bon vivant que o afirme nunca quis amar uma barata... Esquivas, boas de subirem em perna de mesa e em dobras de livros do Kerouac, tudo para fugir das vassouradas, uma guerra de espécies. E o Domingo está de súbito movimentado, diz se não é amor? Os tremeliques, suadeira, pega, pega! Pega coisa nenhuma.
Tonto é quem tenta.

Agora, se os fiéis de nossa doce paróquia eram ou não adeptos de persegui-las, só podemos imaginar. Talvez por seus corações encontrarem-se devotos ao sangue do Senhor, talvez por ocuparem-se com a agonia da blusa vestida do avesso pelo senhor à frente, ela os ia atravessando por baixo. No céu não há baratas.

Mas havia uma barata no chão da Igreja, bem às vistas do senhor Jesus Cristo ali crucificado, às vistas do padre que entrou cantando, da procissão de senhoras com sérios problemas de dicção que seriam claramente requisitadas nas leituras de cartas de São José de Piraporinha do Bom Senhor. Frenética, provavelmente com medo daqueles olhos sangrentos, olhos que a acusavam de estar atrás de pão quando nem só de pão vive o homem. Cabe lembrar que baratas e homens por vezes se confundem, já que a ciência conseguiu interpretar aquela parte da Bíblia de que animais não tem alma e homens são animais... Jesus era um cara implícito.

A barata se perturba com a música alta que toca, e liga o radar de fuga ao ver mil braços erguidos. Folhetos abanam, uns gritam, há uma criança que chora. Essa chora sempre, é de praxe. Pensa se não é hora de voar. Um tanto complexada, verdade, mas não pode-se julgá-la: poucos insetos saberiam discernir demonstrações mundanas de louvor de intenção de extermínio. Ela então se levanta, ajeita, rebola, decola, paira. O alvoroço adio para outro conto, ou assumo que alguém já o tenha contado em história pagã qualquer. Saiba que a vassourada que ela recebeu, nem o Papa ousa lembrar nos momentos de redenção. Foi uma morte triste e feia.

Mas não chore ainda. Vendo-a ali, caco de barata, o Padre guardou o dedetizador e convidou os demais a rezarem um terço em sua memória. Falam até em missa de sétimo dia, ó, pobre criatura do Senhor, levada tão cedo. Eu particularmente resolvi registrar o causo porque me apeguei à pobre - uma ocorrência não tão frequente no mundo das baratas, visto que as mesmas sumiram com a carcaça assim que o zelador abriu brecha.

Ouvi dizer que agora, já estão querendo beatificar a barata.

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