segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Porque me amedrontam os equinos; 16/01/12 - 14:42

Não creio que minha birra por clichês mal aproveitados possa impedir-me de começar a descrição daquela tarde pelo céu. Não fosse por aquele céu, aliás, eu não seria capaz de vencer birra alguma - o azul me faz flexível. As nuvens estavam pingadas, como a tinta branca do pincel estivesse seca. No dizer, soa como algo arrastado, mas quando eu as fitava tinha a impressão de assistir ao rebolado do mundo. À época, éramos pequenos, terríveis. Março, Carlo e eu vínhamos correndo, ensandecidos, o rosto e o riso entregando qualquer pecado juvenil que cometíamos ansiando o inferno. Se não me trai a memória, havíamos soltado os alazões do Menelau - e deste corríamos mais do que daqueles. Sentamos enfim sob a mangueira, os meninos enxertados no suor salgado um do outro, atracados por todos os braços, cúmplices nesse mundo e em qualquer outro. Eu era a mais velha, e apesar de mais madura, era também a mais inconsequente. Tinha medo de aborrecê-los e de tornar-me aborrecida como as meninas mais moças, como Isabel, como qualquer uma que ficasse a coser e fazer caras à porta de casa em vez de divertir-se um pouco. E nessa falta de senso de minha personalidade, eu os trouxera, propositalmente, à porta do quintal de uma das casas mais antigas do interior de Minas; e com certeza a mais mítica na boca das crianças.
Quando apontei para a sombra no morro adiante, senti que tremiam. Mas eu os conhecia, sabia que fariam o que fosse por mim e para causar impressão, tão competitivos que eram. E também que aos onze anos, qualquer pequeno arrisca o corpo pela curiosidade. Por capricho, revivi em palavras, puxando pontas daqui e dali, todas as histórias que se ouvia da casa, pondo um mistério tão atrativo em cada pausa que podia ouvi-los ofegando de excitação. "Há uma velha", eu disse, "e dizem que desde os tempos da mineração, já matou mais de mil homens. Faz feitiçaria. Sob essa mangueira aqui, enterra os olhos, para que assistam às maldades maiores." Levantaram-se num pulo. Imitei-os. Ficaram frenéticos, com medo de mim. Corremos pelos arredores, eu com minhas pernas terrivelmente finas e compridas, eles tendo em seu favor o desespero. Quando demos por nós mesmos, era noite. O céu amontoava nuvens agora, como elas houvessem dado a volta à Terra e parado no mesmo ponto. Temi que chovesse, estávamos longe de casa. Não temi por muito. Logo a água era tão encorpada que era como caísse de baldes e caixas cheias sobre nossas cabeças. Segurei-os pelas mãos sem nem saber para onde os trazia, só querendo enchê-los de mãos, ser-lhes mãe e irmã como me era devido.
Quando chegamos o céu era vazio, tão seco que só o escuro o disfarçava. E nós, como lesmas desfazendo-se, pingávamos lágrimas de terror e torcíamos a chuva de nossos corpos. Deixei-os em casa e assim que desci a escada, pude ouvir em alto e bom tom que Dona Candô não mais me deixaria vê-los. Apanharam, apanharam de chorar e dedurar irmãos, de jurar por Deus. Esperei que subissem, que a luz se apagasse e os soluços silenciassem, e só então saí.
O que depois aconteceu, apesar de importante, é história. Isabel quis ajudar o Fúlvio a cuidar da chácara, que a mãe já estava chocha – era sua vez de descansar. Quando soube do acontecido, entretanto, eu já morava em Belo Horizonte e estava para acertar as contas na casa da Tia Júlia e ir buscar emprego. À noite me encontrava com o radialista mais cafajeste que pisou o mundo, mas que por mim arrastava um bonde. Bel diz que ela quase pariu o quarto filho, que duvidava das minhas cartas e que por causa minha os meninos tinham crescido errados; parece que são hoje bons ladrões de carga. Disse também que afinal, havia uma velha, mas que morrera pouco depois do ocorrido e só por agora lhe acharam os restos. Parece que teve um siricotico depois de uns cavalos em fúria terem pisoteado o pé da mangueira. 

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